Entro no hotel e encontro um desfile de cabeças grisalhas, zanzando pelo hall, subindo as escadas, bisbilhotando pelos corredores. No bar anexo, o quadro persiste: está abarrotado só de senhoras e senhores que bebem cerveja preta, dançam folk bem sincronizados e jogam baralho berrando blefes e ameaças.
A primeira impressão é a de que fui enganado quando me contaram que ali se localiza a atual fonte da juventude. Pior: começa a borbulhar na minha mente uma teoria conspiratória de que a cidade que exporta mocidade ao mundo condena seus habitantes às rugas, pelancas e outros sinais associados à velhice.
Na verdade, as levas são de forasteiros aposentados que aproveitam os descontos de baixa temporada para peregrinar até aquela cidade da costa oeste da Irlanda que tem o turismo como segunda fonte de renda. A primazia do dinheiro local vem da exclusividade na produção mundial de botox, a marca registrada da substância que apaga os anos dos rostos e que é feita a partir de um veneno que poderia apagar a humanidade da face da Terra.
O visitante que chega a Westport pressente que há algo distinto ali. Mas tem de admitir que é um pouco exagerado que aquela localidade de 6.000 habitantes seja responsável por tantos fenômenos, como a parada da ação natural do tempo, o envasamento do viço e frescor juvenil para posterior globalização e, de quebra, a possibilidade de destruição de nossa civilização. Parece mais uma ficção embriagada típica daquela ilha literária. Contudo, é a realidade.
Entres milagres e piratas
Antes de a fábrica de botox dominar a paisagem, Westport era notória por outros dois enredos. Um deles é a lenda de que São Patrício jejuou durante 40 dias e noites no topo da montanha que emoldura o cenário, que hoje leva o nome de monte Patrick.
O santo, nunca canonizado pelo Vaticano, é o patrono da Irlanda e um dos introdutores do cristianismo na ilha durante o século 5, explicando o conceito da Santíssima Trindade aos pagãos a partir do trevo de três folhas, que virou símbolo do país. Até a ausência de cobras na Irlanda é atribuída às preces de São Patrício no morro que recebe desde a Idade Média uma peregrinação de fieis atrás de milagres todo o último domingo de julho.
O monte Patrick serve de fundo para Westport e guarda muitas lendas cristãs da IrlandaImagem: Rodrigo Bertolotto/UOLA outra história é a fundação da vila pela dinastia O’Malley, clã de lordes piratas que dominaram a região antes de os britânicos restringirem mais a colonização da área, a partir do século 17.
Hoje, a cidade lida com outro tipo de pirataria. Entre as várias tentativas no mundo de produzir um botox genérico, já houve dois casos na Coreia do Sul que envolveram acusação de espionagem industrial e foram parar na ITC (International Trade Commission), corte de arbitragem com sede nos Estados Unidos. As concorrentes foram acusadas de roubar a bactéria que produz a toxina botulínica, além dos segredos industriais para convertê-la de veneno a produto cosmético.
Da linguiça ao estrabismo
Até chegar aos galpões superprotegidos de Westport, o botox colecionou uma trajetória de incidentes. Tudo começou em 1820, quando o médico alemão Justinus Kerner detectou o “envenenamento da linguiça” e começou suas pesquisas, após dezenas de pacientes sofrerem paralisia (inclusive dos músculos respiratórios, levando à morte). Em comum, todos haviam comido linguiça suína.
Em 1875, o professor belga Émile van Ermengem conseguiu isolar a bactéria Clostridium botulinum a partir de um pedaço de presunto que contaminara 34 pessoas. Estava catalogada uma nova doença, o botulismo — o nome vem de botulus, linguiça em latim.
REPÓRTERES NA RUA
EM BUSCA DA REALIDADE
SOCIEDADE
SOCIEDADE
Vila irlandesa esconde fonte da juventude e veneno mais letal do mundo
Rodrigo Bertolotto
Do TAB, em Westport (Irlanda)
27/05/2022 04h01
Entro no hotel e encontro um desfile de cabeças grisalhas, zanzando pelo hall, subindo as escadas, bisbilhotando pelos corredores. No bar anexo, o quadro persiste: está abarrotado só de senhoras e senhores que bebem cerveja preta, dançam folk bem sincronizados e jogam baralho berrando blefes e ameaças.
A primeira impressão é a de que fui enganado quando me contaram que ali se localiza a atual fonte da juventude. Pior: começa a borbulhar na minha mente uma teoria conspiratória de que a cidade que exporta mocidade ao mundo condena seus habitantes às rugas, pelancas e outros sinais associados à velhice.
Relacionadas
Milhões de vendedoras formam o “precariado da beleza” no BrasilPopulação do Brasil está envelhecendo e mudará profundamenteBanco de cérebros em São Paulo estuda origem da demência
Na verdade, as levas são de forasteiros aposentados que aproveitam os descontos de baixa temporada para peregrinar até aquela cidade da costa oeste da Irlanda que tem o turismo como segunda fonte de renda. A primazia do dinheiro local vem da exclusividade na produção mundial de botox, a marca registrada da substância que apaga os anos dos rostos e que é feita a partir de um veneno que poderia apagar a humanidade da face da Terra.
O visitante que chega a Westport pressente que há algo distinto ali. Mas tem de admitir que é um pouco exagerado que aquela localidade de 6.000 habitantes seja responsável por tantos fenômenos, como a parada da ação natural do tempo, o envasamento do viço e frescor juvenil para posterior globalização e, de quebra, a possibilidade de destruição de nossa civilização. Parece mais uma ficção embriagada típica daquela ilha literária. Contudo, é a realidade.
Entres milagres e piratas
Antes de a fábrica de botox dominar a paisagem, Westport era notória por outros dois enredos. Um deles é a lenda de que São Patrício jejuou durante 40 dias e noites no topo da montanha que emoldura o cenário, que hoje leva o nome de monte Patrick.
O santo, nunca canonizado pelo Vaticano, é o patrono da Irlanda e um dos introdutores do cristianismo na ilha durante o século 5, explicando o conceito da Santíssima Trindade aos pagãos a partir do trevo de três folhas, que virou símbolo do país. Até a ausência de cobras na Irlanda é atribuída às preces de São Patrício no morro que recebe desde a Idade Média uma peregrinação de fieis atrás de milagres todo o último domingo de julho.
A outra história é a fundação da vila pela dinastia O’Malley, clã de lordes piratas que dominaram a região antes de os britânicos restringirem mais a colonização da área, a partir do século 17.
Hoje, a cidade lida com outro tipo de pirataria. Entre as várias tentativas no mundo de produzir um botox genérico, já houve dois casos na Coreia do Sul que envolveram acusação de espionagem industrial e foram parar na ITC (International Trade Commission), corte de arbitragem com sede nos Estados Unidos. As concorrentes foram acusadas de roubar a bactéria que produz a toxina botulínica, além dos segredos industriais para convertê-la de veneno a produto cosmético.
Da linguiça ao estrabismo
Até chegar aos galpões superprotegidos de Westport, o botox colecionou uma trajetória de incidentes. Tudo começou em 1820, quando o médico alemão Justinus Kerner detectou o “envenenamento da linguiça” e começou suas pesquisas, após dezenas de pacientes sofrerem paralisia (inclusive dos músculos respiratórios, levando à morte). Em comum, todos haviam comido linguiça suína.
Em 1875, o professor belga Émile van Ermengem conseguiu isolar a bactéria Clostridium botulinum a partir de um pedaço de presunto que contaminara 34 pessoas. Estava catalogada uma nova doença, o botulismo — o nome vem de botulus, linguiça em latim.
Os seguidos surtos de botulismo no início do século 20 e as pesquisas em laboratório acabaram por chamar a atenção ao poder destrutivo da toxina — o cálculo é que um grama dela pode matar um milhão de pessoas. Tanto na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) quanto na Guerra Fria (1945-1989), os dois lados do conflito tinham QGs de bioarmas que incluíam, entre outras substâncias, a toxina botulínica. Porém, uma convenção internacional em 1972 proibiu a produção e armazenamento desse tipo de armamento — surgiu a partir daí outro pavor: o bioterrorismo.
Foi nesse contexto que Ed Schantz, um cientista que trabalhara em Fort Detrick, quartel no estado de Maryland que sediava o programa de armas biológicas dos EUA, começou a enviar amostras da toxina para um colega oftalmologista, Alan Scott, que pesquisava como tratar o estrabismo sem cirurgia.
Scott estava interessado na propriedade da toxina de bloquear a ação da acetilcolina, neurotransmissor responsável pela contração de músculos. As pesquisas mostravam que, em pequenas quantidades, a substância tinha só ação local e temporária (após seis meses a paralisação acabava). A ideia deu certo, os olhos voltaram a seus lugares, e Scott patenteou a toxina atenuada com o nome “Oculinum”.
Em 1987, uma nova descoberta deu uma guinada na história. Em Vancouver, no Canadá, a oftalmologista Jean Carruthers testava a ação do produto contra os espasmos involuntários das pálpebras quando percebeu que as rugas do rosto de seus pacientes diminuíram. Ela contou o resultado para seu marido, Alaistair, que é dermatologista, e os dois pesquisaram os efeitos do produto e divulgaram em revistas e congressos médicos.
Os resultados chamaram a atenção da Allergan, empresa que fabricava colírios e outros produtos oculares, que comprou em 1991 a invenção de Scott, batizou-a de “botox” e transferiu toda a produção para sua unidade na Irlanda.
Autoestima engarrafada
Sob o clima úmido da costa atlântica, os musgos se multiplicam nas pedras que formam as pontes, muros e casas de Westport. Um contraste total com o ambiente esterilizado dentro da indústria que lucra mais de US$ 3 bilhões ao ano. Controlar a atmosfera local parece uma coisa fácil para quem faz o tempo recuar.
Para entrar na fábrica, é preciso vestir capa, touca, máscara e sapatilha descartáveis, além de óculos de proteção e luvas de borracha. Celular fica em um armário para evitar qualquer tipo de espionagem. Depois, passa-se por uma câmara de descontaminação.
A linha de produção finalmente aparece, atrás de duas camadas de vidro. A sala onde a nuvenzinha de toxina é enfrascada por robôs deve ser uma dos lugares mais desinfetados do globo, com o ar filtrado 200 vezes a cada hora. Umidade e temperatura são monitoradas, e várias amostras do produto vão para a inspeção para certificar que não há qualquer tipo de contaminação.
Um trabalhador, todo paramentado, observa o desfile de ampolas transparentes pelas esteiras da máquina. Sua função é encaixotar a produção de 24 mil frascos por hora daquela máquina. Em outra sala, as caixas estão empilhadas e algumas já tinham um adesivo endereçando para o Brasil, o segundo maior consumidor mundial, só atrás dos EUA. Mesmo colecionando concorrentes nos últimos anos, o botox conserva mais de 70% do mercado de injeções de toxina botulínica.
A leveza da beleza
Um jato com seguranças armados atravessa o Oceano Atlântico trazendo dos EUA a matéria-prima, a perigosíssima versão líquida da toxina. O local de partida e de chegada e as datas do carregamento são segredos que só alguns executivos e autoridades dos dois países sabem.
Na fábrica irlandesa, a toxina é filtrada, hiperdiluída e transformada em pó até perder a potência destrutiva e poder ser comercializada. Cada vidro tem 100 unidades da toxina, o que pesa cinco nanogramas — a produção desde 1994 ali totaliza 0,5 grama, ou seja, a ponta de um lápis. Além da função anti-idade, o botox possui mais 36 usos autorizados para disfunções musculares pelo corpo.
A indústria local emprega 1.200 pessoas, isto é, 20% da população de Westport, que atraiu a Allergan em 1977 oferecendo isenções de impostos e um galpão já construído, onde antes era um pasto para vacas. Essa estratégia de incentivo fiscal, na verdade, foi adotada por toda a Irlanda, que se tornou o o país que mais atraiu investimento norte-americano nas últimas três décadas.
Em Westport, um dentista no centro faz aplicações. “Antes a gente achava que era coisa só para celebridades, mas eu e muitas mulheres daqui experimentamos. Acho que o pessoal anda mais feliz ultimamente”, diz antes de dar uma risada Sara Flanagan, 35, dona de confeitaria local.
Feita a visita, saio da cidade, e tudo se dissolve: lugares, pessoas, cifras. Tudo vira memória. A toxina pode apagar os anos dos rostos (eu nunca tentei), mas os anos, por seu lado, continuam se encarregando de apagar todo o resto que há na cabeça. Escrever é como restabelecer as linhas e os contornos da experiência ao devido lugar, como os sulcos de um rosto.
Fonte: UOL