Na terra dos brôs

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Três rapazes estavam curvados sobre seus celulares, com os olhos colados na tela e os polegares digitando freneticamente. Um deles, sem levantar a cabeça, deu as boas-vindas: “Vamos chegando.” Era uma tarde quente no fim de março, e os indígenas da etnia Guarani-Kaiowá jogavam uma partida do game Free Fire, cujo objetivo é sobreviver numa ilha e destruir o inimigo. Eles fazem parte do Brô MC’s, o primeiro grupo de rap indígena do Brasil.

O nome Brô vem de brothers, que neste caso tem sentido literal: os quatro MC’s, ou mestres de cerimônia, são duas duplas de irmãos. CH e Kelvin Mbarete – seus nomes artísticos – vivem na aldeia Bororó. Bruno Veron e Clemerson Batista moram na aldeia vizinha, Jaguapiru. As duas comunidades reúnem cerca de 16 mil pessoas na Reserva Indígena de Dourados, criada em 1917, a 8 km do Centro da cidade que é um pilar do agronegócio em Mato Grosso do Sul.

O gosto pelo rap começou na infância. Aos 7 anos, Veron tinha um trabalho de escola para fazer, sobre meio ambiente e manejo do lixo, e o professor propôs que criasse versos sobre o tema. O menino entendia bem do assunto porque catava sucata, roupa e comida em um lixão quando era mais novo. Veron misturou trechos em português e guarani – as duas línguas em que foi alfabetizado –, e o rap foi um sucesso. Ele passou a compor com Batista. Depois, encontrou CH e Mbarete. Em 2009, o Brô MC’s gravou o primeiro álbum.

Os quatro rappers, todos com ensino médio completo, não vivem somente da música. Nos treze anos de existência do grupo, já trabalharam como servente de pedreiro, jardineiro, montador de palco e encanador. Na aldeia Jaguapiru, Batista mora numa casa de alvenaria de seis cômodos, com um pequeno estúdio de gravação em um dos quartos. Ele dispõe de energia elétrica, mas sofre com a falta de água, porque o poço comunitário está secando. É vizinho de seu irmão Veron, que nunca pensou em ir tão longe como artista. “Quem iria se interessar pela nossa verdade?”, diz.

Dois artistas se interessaram: o DJ Alok e o rapper Xamã. Em parceria com o DJ, o quarteto compôs uma música incluída na trilha da novela Pantanal, que estreou no fim de março. Por meio de seu instituto, Alok também está financiando um estúdio para os Brô MC’s dentro da aldeia Jaguapiru.

O rapper Xamã – autor do hit Malvadão 3, que chegou ao topo do ranking do Spotify Brasil em 2021 – convidou o grupo para dividir o palco no Rock in Rio, em setembro. Nascido e criado no Rio de Janeiro, mas de ascendência indígena, Xamã elogia os colegas: “Me sinto representado pelos Brôs porque eles representam muitos brasileiros. Assim como outros me deram oportunidade de ter um microfone e subir num palco grande, eu acho justo, como prega o rap, levar eles pra cantar comigo no Rock in Rio, pras pessoas verem como é bacana ter outras línguas aqui no Brasil.”

Bruno Veron e Clemerson Batista são netos de Marcos Veron, líder indígena assassinado em 2003 em uma disputa de terra. “Quase toda tarde tem tiroteio lá embaixo”, conta Veron, referindo-se aos arredores da reserva. “A gente gosta dessa guerra. Quanto mais me xingam, mais me dá ideia pra fazer música”, diz Batista. Para o grupo, a música Terra Vermelha é a que melhor retrata sua luta: Terra vermelha do sangue derramado/Pelos guerreiros do passado, massacrados/Fazendeiros, mercenários, latifundiários/Vários morreram defendendo sua terra/Onde vivo, aldeia, já existiu guerra.

A Reserva Indígena de Dourados se parece com qualquer periferia rural brasileira: ruas de terra, comércio precário, casas modestas sem acabamento e quase nenhuma presença do Estado. Os indígenas se vestem como os brancos e usam bicicleta, moto ou carro. Num trecho de menos de 1 km na entrada da aldeia Jaguapiru há pelo menos três igrejas evangélicas. Dentro das casas, o que marca a identidade indígena é a língua guarani, falada sobretudo pelos mais velhos.

Por essa razão, a música dos Brô MC’s vem em boa hora. Eles trazem uma nova forma de contar ao mundo os velhos problemas e alertam os mais jovens sobre a importância de manter vivo o guarani. Ndendokatúieremanha/Eremanharõxere-hemba’evenderehexái (Você não consegue me olhar/ E se me olha não consegue me ver) diz a letra de Eju Orendive (Venha com a gente). O tema do desprezo também aparece em A Vida que Eu Levo: O homem branco traz doença, dizimou o nosso povo/causou a nossa miséria, agora me olha com nojo.

Naquele domingo, por volta de meio-dia, a produtora Fabiana Fernandes chegou à casa de Batista, levando o almoço da turma: frango assado, maionese e pirão. Ela já havia preparado o cenário da live que o Brô MC’s gravaria à noite, em um galpão de Dourados. “Eles não têm luxo, e como artistas só conseguem tirar o mesmo salário que teriam como servente de pedreiro”, conta Fernandes, de 33 anos, uma moça de pele e olhos muito claros. O Brô MC’s já fez shows em várias comunidades do país e até na Alemanha, mas nunca se apresentou em suas aldeias.

Enquanto se maquiava para entrar em cena, espalhando no rosto uma pasta escura de urucum com açúcar preparada por ele mesmo, Batista disse: “Na época do Lula, dava pra comer carne, tinha emprego pra escolher e pela primeira vez o indígena entrou na universidade.” Veron comentou que em sua aldeia tem muito apoiador de Bolsonaro: “Eles querem porte de arma, se inspiram no branco, e quem tem um salário melhor se acha superior.”

Dos quatro, Mbarete é o que mais se manifesta sobre política. Ele achou uma afronta Bolsonaro ter aparecido em público usando um cocar, em 18 de março, por ter ganhado a Medalha do Mérito Indigenista. “O Brasil está em coma e vai levar muito tempo pra se recuperar”, disse o rapper, que trabalhou como agente indígena de saneamento, mas não tem água encanada em casa, na aldeia Bororó. “A verdade é que nenhum político até agora fez diferença pros indígenas.” Seu irmão, CH, mais reservado, consentiu com a cabeça.

Na noite da live, Mbarete estava nos trinques, com camiseta do grupo, calça preta, tênis de cano alto acolchoado, uma cascata de colares indígenas misturados com cordão de prata e pingente de revólver cravejado de strass. Na cabeça, boné branco de aba reta com cocar amarelo e um penacho escorrendo pelas costas. Para arrematar, bolsa com estampa Louis Vuitton atravessada no peito e um relógio dourado no pulso.

Antes de entrar em cena, cada um dos rappers sacou o celular e voltou ao game online. Agora eram quatro no mesmo time, enfrentando quatro caras-pálidas de algum canto do Brasil. Aqui e ali, só se ouviam rajadas de metralhadora. Os Brôs perderam a primeira partida, mas ganharam a final.

Fonte: Raquel Freire Zangrandi / Folha Piauí

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